sábado, 20 de setembro de 2014

Artigo: Martírio contínuo


   O martírio é uma das faces do cristianismo, ao longo dos tempos. A calmaria em alguma parte do mundo é contrastada noutra, dada a virulência da perseguição aos discípulos de Jesus Cristo. Por sinal, Ele já havia afirmado: “Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça porque deles é o reino dos céus”. (Mt 5,10) A perseguição aos cristãos se revelou logo no início da vida da Igreja, começando com o martírio de Santo Estevão, de Tiago e dos demais Apóstolos. As forças humanas não são suficientes para que uma pessoa enfrente a violência do martírio com fidelidade e serenidade. A convicção da fé cristã, fortalecida pela graça divina, está raiz do testemunho do martírio. Os patrocinadores do martírio, sempre ligados ao poder político, social e religioso, entendiam que o martírio de umas pessoas levaria à negação da fé cristã. Ao contrário, como ensina Tertuliano, “O sangue dos mártires é semente de novos cristãos.”

A intolerância, a intransigência, o fanatismo e o fundamentalismo sempre estão na raiz e no centro dessa prática ofensiva à liberdade de fé e de culto e aos direitos humanos. A própria história do cristianismo tem páginas avermelhadas de sangue, em diversos momentos, como no tempo das Cruzadas, em razão da defesa da fé cristã, e da Inquisição, em vista da defesa da doutrina católica. Ainda hoje esses sentimentos de intolerância e intransigência e essas atitudes de fanatismo e fundamentalismo, lamentavelmente, estão ancorados na prática de uma religião, de uma fé. O palco e a forma de martírio de cristãos têm o perfil de cada tempo e lugar, porém a razão é a mesma – impedir a vivência, o testemunho e a expansão da fé cristã. Na visão de muitas pessoas, o tempo dos mártires passou porque os cristãos não estão sendo mais levados a coliseus e arenas, como espetáculo para olhos curiosos e corações endurecidos. Na realidade, eles continuam sendo duramente perseguidos, em diversas nações, por detentores do poder político, por membros de organizações da sociedade, declaradas ou ocultas, e por seguidores fundamentalistas de algumas religiões. Diferentemente dos primeiros tempos, quando eram levados a tribunais para julgamentos, com argumentos sabidamente forjados, como no caso do próprio Jesus e de Santo Estevão, nos dias de hoje o martírio de cristãos acontece pela via do massacre coletivo, atingindo, indistintamente, crianças, jovens e adultos, em suas moradias, no seu ambiente de trabalho e nos seus lugares de culto. Uma estatística estarrecedora confirma a crueldade da perseguição e morte de cristãos: “Só em 2012, foram mortos 105 mil cristãos por causa da fé”. Nesse número, estão incluídos cristãos de diferentes denominações. João Paulo II, na comemoração do Jubileu do ano 2000, definiu essa realidade como “o ecumenismo dos mártires”. Diante desse quadro, o Papa Bento XVI afirmou que o cristianismo é “a religião mais perseguida do Planeta.”

Há uma grandeza no martírio dos cristãos, sofrido por causa do Reino de Deus, mas há uma iniquidade na raiz da perseguição e na aplicação do martírio, quaisquer que sejam a motivação e o pretexto de sua prática. Vê-se, pois, que o martírio faz parte, umbilicalmente, do ser do cristianismo; não é um registro circunstancial na história da Igreja católica. Na pessoa de seus discípulos e discípulas, Jesus continua sendo perseguido e martirizado.

                                   Dom Genival Saraiva

                                   Bispo Emérito da Palmares - PE

0 comentários:

Postar um comentário